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PUBLICAÇÕES >> FOGO APAGOU

Dr. John Keith Wood

Estância Jatobá

 

To know and be that he is

Shakespeare

Ontem estava com todo o jeito de pleno verão. Calor abrasador, formações de nuvens monumentais, e o vento do norte vagarosamente aumentando sua força em preparação para a tempestade do final da tarde. Uma chuva de pedras, de repente varreu os campos. A faísca de um raio estourou a torre de água de concreto na colina que separa nossa fazenda da Cooperativa Holandesa. Uma outra descarga destruiu o motor que puxa água do poço até a colônia: quatro casas aninhadas sob uma majestosa mangueira na borda do pomar de laranjas.

Em tempos idos, esta violência teria sido atribuída aos Titãs, aos Ciclopes e aos Hecatônquiros. Essa primeira linha de grandes entidades era o mistério e a terrível força da natureza. Nosso infortúnio talvez tivesse sido obra dos gênios caolhos Brontes, Estérope e Argés.

Como depositário dos mitos antigos, apenas pude observar, espantado. Mas possuído também por mitos modernos, o significado era simples: esse espetáculo significava nada mais do que o embate entre massas de ar de diferentes temperaturas.

Por falta de lubrificação o eixo da bomba engripou. Quando o raio atingiu o poste do transformador próximo, a onda de corrente elétrica queimou a bobina do motor. Não há mais água para beber, regar a horta, chafurdar os porcos, ferver arroz e feijão, lavar a louça, limpar a varanda, ou banhar-se.

Choveu de madrugada e de manhãzinha. A estradinha de terra que leva ao estábulo tornou-se uma escorregadia camada de barro vermelho. Quando me dirigia para lá na alvorada, minha velha camionete derrapou para um lado e para o outro na estrada lamacenta. Finalmente suas rodas encalharam nos sulcos profundos cortados pelo trator nas suas passagens diárias.

As mulheres da colônia estavam surpreendentemente animadas com a crise ao se encontrarem no poço para buscar água em baldes. Dando risadinhas e caçoando das mais novas, fofocando descaradamente dos namorados das meninas. Trocando estórias de desastres causados por tempestades, comportamentos escandalosos de celebridades locais (particularmente o padre e o prefeito), e a última sobre como seus patrões são pão-duros e estúpidos.

Seus maridos, por outro lado, estavam inusitadamente quietos. Normalmente esses homens levam a vida e suas atribulações, sem se alterar. Quando uma de suas galinhas é morta por um cachorro do mato ou sua roça de feijão é inundada ou mesmo quando uma esposa foge, os outros batem nas costas e fazem piadas com a vítima. Surpreendentemente, quando uma máquina quebra, eles se embaralham todos, se arrastando e olhando para os pés.

Sebastião Tratorista, que não se deixa intimidar pelo tempo ou pelas máquinas, se recusou a remover a bomba do poço. Ele queria ficar perto de casa, pois ela tinha sido roubada o dia anterior. Apenas sumiram duas blusinhas de sua filha e um colar de pérolas falsas. Ele suspeitava que fosse algum trabalhador das fazendas vizinhas.
Todos conhecem a identidade do ladrão mas ninguém falará. Porque fazê-lo iria por em perigo a testemunha e sua família. Em geral, as pessoas preferem "deixar nas mãos de Deus". Sebastião é uma exceção. Ele denunciou o ladrão abertamente. Exigiu reparação. Ele iria fazer tudo de que era capaz - tomar conta, trancar a casa, manter um olho vivo - somente o que estava além da sua capacidade ele poria nas mãos de Deus.
No entanto, ele estava inconsolável. O desconcertante era como o ladrão - outro trabalhador como ele - podia trair um dos seus irmãos. "Não se rouba o povo!" ele continuava a resmungar. Para ele era justo que os ricos fossem roubados. Afinal de contas, eles não tinham mais do que mereciam? Mas roubar um do povo: é antiético, abominável, imperdoável, e pior de tudo, não-brasileiro.

Carlos Leiteiro, também não queria tirar a bomba do poço, que fica no meio de uma mata escura onde água doce jorra de uma fonte antiga. Alguns dias atrás, tocando o gado para o curral através desse lugar, ele teve sorte de escapar ao bote de uma cobra enrodilhada. Carlos não escondia seu orgulho. Encolhendo a barriga e saltando para o lado ele tinha evitado o ataque mortal. Sua agilidade foi elogiada. Ninguém mencionou medo. Entretanto, desde então ele vai à cavalo tocar o gado.

Eu desmontei a bomba sem ajuda. Levei o motor queimado para o eletricista da cidade. Voltei e passei o tempo, em que ele estava sendo enrolado, na sombra perto do rio.

Uma grande parte da vida no campo consiste em esperar. A experiência nem sempre deixa de ter suas compensações. Esses momentos quando a estrela vespertina se alinha com lasca de lua nova no por do sol, quando o tênue arroz orvalhado empurra seus brotos sedosos através do solo seco, quando as laranjeiras estão em flor, esses são momentos de grande nutrição para a alma.

"Fo...o pagô", "Fo...o pagô", ouvia-se dos brejos. A rolinha que emite esse som (Scardafella squammata) na verdade tem dois apelidos. Um é "rola cascavel" devido ao som produzido por suas asas estalando entre os galhos, o outro é "fogo apagou", logicamente pela semelhança dos sons. Fiquei pensando no porque as primeiras pessoas que ouviram esse grito o associaram à essa expressão. Por que não "ô...agradou" ou qualquer outra coisa que tivesse um som similar? Talvez, penso eu, "fogo apagou" tenha tido uma importância especial naquela época. Porém, por que seria tão urgente saber que um "fogo apagou"?

Quem sabe, imaginei, a sensibilidade à essa frase vem de práticas primitivas de se manter fogos em honra de santos ou queimar oferendas para certos deuses. Ou talvez, em tempos mais recentes como sinalização para os barcos na orla marítima. Ou, como nas ilhas britânicas do sul, que acendiam fogo como aviso de uma invasão armada. Aqui, no interior do Brasil, fogueiras podem ter mandado mensagens entre vilas formadas no rastro dos bandeirantes no seu caminho de desbragamento. Um fogo de vigília religiosa, uma chama para alertar ou convidar os amigos, qualquer um desses, se começasse a se apagar mereceria o grito: "fogo apagou!".

Com as necessidades da civilização, hábitos e tecnologias mudaram, e estas especulações não são mais plausíveis. Contudo, as palavras ainda nos chamam. Sentimos o alerta; mas para fazer o que?

Sozinho na margem do rio, levado aí por atos da terrível força da natureza, ouvindo sua voz misteriosa, comecei a divagar sobre se a frase, não se referiria à própria vida. Talvez tenha algo a ver com a essência de uma parte da natureza, a parte humana, que busca verdadeiramente se conhecer? O fogo apagou, talvez se refira à alguma "chama" que inicialmente todos possuíamos? Não será sua "queima" a inspiração motriz para buscar o autoconhecimento, para descobrir de onde viemos, para onde vamos, o que devemos fazer aqui? Um tremeluzir aumentando às vezes, outras vezes quase sumindo... E o aviso: sem chama, sem chance. "Fogo apagou! Fogo apagou! Fogo apagou!"

O barrento Camanducaia se escoa devagarzinho, redemoinhando entre as raízes nodosas da margem erodida. Enquanto espero ao lado de suas águas correntes, no frescor do bosque, estou abanando uma brasa que me liga à eternidade, tentando impedir que o fogo se apague, tentando me lembrar do propósito de mim mesmo.