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PUBLICAÇÕES >> GENIUS LOCI

Dr. John Keith Wood

Estância Jatobá

Março de 2002

 

A Beleza é um fenômeno arquetípico.
Embora nunca se materialize como tal, ela
esparrama seu brilho sobre milhares de
diferentes manifestações do espírito
criativo e é tão multiforme quanto a
própria Natureza.

Johann Wolfgang von Goethe

Suponha que você queira embelezar aquela lagoinha na periferia da cidade. Ou talvez reformar uma velha fazenda. Ou talvez tornar o bosque da colina mais atraente, podando e plantando. Talvez paisagismo não seja seu interesse principal. E sim, a ecologia. Seria desejável reflorestar as margens dos rios e dos tributários para absorver as águas da chuva, prevenir erosão e melhorar a diversidade do ecossistema.

Existe uma arte razoavelmente simples de se compreender, não necessariamente fácil de se conseguir, certamente bastante profunda, para analisar e sugerir melhoramentos estéticos e ecológicos em qualquer ecossistema. Trata-se, basicamente do método científico do sábio alemão Johann Wolfgang Von Goethe. Ciência? Você achou que eu tinha dito arte? É uma arte, sim. Também, é ciência no melhor sentido.

O objetivo da ciência é alcançar uma unidade que possa aderir todas as partes do fenômeno. Esse também é o objetivo de Goethe. A diferença está no método. O cientista convencional faz conjeturas sobre as partes e tenta prová-las ou refutá-las. Então, juntando esses pedacinhos de conhecimento, uma unidade, uma abstração, pode ser construída. De acordo com o pensamento de Goethe adota-se uma atitude receptiva de "escuta". Ao invés de juntar partes que têm algo em comum para criar uma unidade abstrata, ela trabalha a partir do fenômeno, de dentro-para-fora. O fenômeno constitue uma forma de unidade concreta. As partes que possam aparecer dentro dela são manifestações dessa unidade - multiplicidade dentro da unidade, ao invés de unir multiplicidades.

Para prevenir fantasias, e crenças baseadas em desejos e não em fatos e outras projeções contaminadoras, se requer uma arte treinada e disciplinada. A intuição não substitui a observação exata e o pensamento claro. Ela os informa.

Goethe acreditava que, "Nenhuma das faculdades humanas deveria ser excluída da atividade cientifica. As profundezas da intuição (Ahnung), uma consciência alerta e segura do presente, profundidade matemática, exatidão física, as alturas da razão (Vernunft) e agudeza do intelecto (Verstand) juntamente com uma imaginação versátil e ardente, e o amoroso deleite do mundo dos sentidos - todos são essencial para uma apreensão vívida e produtiva do momento". (Naydler, 1996) Com conhecimento e intuição pode-se "sentir" ou "adivinhar" as necessidades das plantas, do solo, do lugar como um organismo.

Tendo captado essa unidade, "ela" fornece a direção para qualquer intervenção que se possa contemplar. O cientista que emprega esse método usa também as últimas ferramentas científicas. Além disso, ele olha, escuta, cheira, toca, saboreia, isto é, observa com todos os sentidos. Nessa atividade, ele não se exclui do fenômeno. Na realidade, ele acrescenta mais um instrumento de alta precisão a essa moderna caixa de ferramentas científica. Ele acrescenta a si próprio. O filósofo inglês Jeremy Naydler comentando o trabalho de Goethe esclarece: "Os seres humanos, contemplando o fenômeno natural com os sentidos em alerta e uma mente aberta, são potencialmente um instrumento mais poderoso e exato que qualquer parte de equipamento científico especializado".

Paisagistas, engenheiros florestais, fazendeiros, ecologistas, naturalistas, todos mostraram interesse nesse tipo de análise. Um número substancial de projetos se realizou gerando uma considerável quantidade de literatura - nos Estados Unidos, mas principalmente na Holanda onde existem programas nacionais e regionais de uso da terra. Partes do ecossistema em consideração são estudadas, usando-se métodos analíticos convencionais bem como observação exata. Procura-se, então, a unidade dessa multiplicidade. O pesquisador tenta entender o que o sistema inteiro está "dizendo", isto é, alcançar intuitivamente o Genius loci - o espírito do lugar.

Como seria uma análise típica? Como exemplo, tomei por base o relatório da pesquisadora Margaret Colquhoun (1997) sobre um projeto paisagístico conduzido em uma floresta ao sul da Escócia.

O desafio encontrado pelos pesquisadores em Pishwanton Wood, os 20 ha de terra em questão, era como unir o lugar (respeitando seu passado) e as idéias de mudanças (que refletiam as necessidades ecológicas, humanas e outras provenientes do futuro). Como se poderia conectar saudavelmente o passado e o futuro dessa terra aqui e agora? Colquhoun declara que o projeto almejava desenvolver um método de apreciação da paisagem que levaria de modo consciente e claro a uma experiência do Genius loci - isto é, do espírito ou identidade do local. A pesquisa incluiria todos os métodos analíticos usuais usados em ecologia. O resultado desejado seria criar um "plano, ecológico, arquitetônico e agrícola, significativo para esse lugar".

Oficinas foram realizadas no local durante três verões. Entre 6 e 12 pessoas participaram em cada um. Pessoas de formação profissional e interesses diferentes se envolveram no projeto.

A área, que se localiza ao pé de encostas de face norte, fica a 36 km a este de Edinburgh. A uma altitude de 200 metros, ocupa uma região que divide as Terras-Baixas da Escócia das Regiões Montanhosas do Sul. Além de matas de coníferas e decíduas existem bétulas antigas, terrenos de charneca e atoleiros e plantas medicinais. Inclue brejos expostos, cumeeiras carecas, vales de matas, encostas íngremes e abrigadas, riachos protegidos e expostos, plantações e cerrado. Possui vistas expansivas e fechadas, em súbitos contrastes.

As áreas circundantes são terras ricas de agricultura. O bosque pode ter sido sítio de cerimonial ou cemitério no passado. Foram encontradas ruínas de uma fortaleza celta numa colina. Abrigos abandonados, um topo de morro em mau estado, pinheiros circundando uma clareira calorosa e ensolarada saúdam o visitante que chega.

Primeiras Impressões

A avaliação começa com os pesquisadores anotando suas primeiras impressões da paisagem. Goethe descreveu a atitude receptiva com a qual se deve aproximar tal estudo e o que se pode esperar: "Aquilo que se formou é imediatamente transformado de novo, e para podermos conseguir alguma compreensão vívida da natureza, devemos nós mesmos permanecer tão móveis e plásticos como o exemplo que a natureza nos apresenta".

Assim, em silêncio, os participantes andam pela área toda, olhando, escutando, cheirando, saboreando, sentindo, ficando abertos àquilo que possa ser surpreendente, vendo o todo bem como as partes. A partir de suas impressões iniciais, cada pessoa faz um mapa do "humor" do lugar.

Daí troca-se, então, experiências entre eles. Eis alguns comentários tirados do projeto Pishwanton: "É uma ilha em um mar de agricultura moderna, mas ao mesmo tempo tem pedacinhos de tudo - é um mundo em si próprio". "Foi influenciado em muitos níveis pela humanidade mas em todo lugar pode-se testemunhar a resposta regeneradora da natureza". "É um lugar de paz e de cura, mas foi estuprado". "Uma variedade de recantos, todos dentro do mesmo lugar abundante de potencial mas onde cada um parece de alguma forma incompleto".

O plano físico

Depois, o passeio inicial é repetido de memória. E os fatos são registrados. Altitude, face e inclinação das encostas, indicação do norte, ventos dominantes, composição do solo, rochas, rios, lagos, formações de nuvens, chuvas, luz do sol. Árvores, arbustos, tocas de animais, espécies avistadas - inclusive tamanho, cor, forma - gravar os pios dos pássaros, cheiros, e registrar tabelas de temperaturas. Anotar edifícios, estradas, pontes e cercas. Deve-se fazer listas, desenhos e mapas enfim tudo que puder incrementar a documentação do lugar tal como é. Depois, compartilhar seus achados entre si.

O plano temporal

Aí, eles tentam experienciar a paisagem e sua transformação através do tempo. A história do lugar é estudada através de registros públicos, fotografias, mapas bem como estórias da tradição oral, observações de formações geológicas, ruínas, plantações, tocos de árvores, antigos canais de irrigação, linhas de cercas, trilhas, padrões de dispersão de espécies vegetais.

Embora nessa fase as partes do ecossistema sejam tratadas isoladamente mais do que em sua unidade, o processo não será fragmentado. Goethe indica o ciclo de conscientização que vai sendo desenvolvido: "Cada ato de olhar se torna uma observação, cada ato de observação uma reflexão, cada ato da reflexão produz associações; assim, fica evidente que teorizamos cada vez que olhamos o mundo cuidadosamente. A habilidade de fazê-lo com clareza de mente, com autoconhecimento, de um modo livre, e ... com ironia, é uma habilidade que necessitaremos para evitar as armadilhas da abstração e atingir os resultados que desejamos, resultados que poderão servir para aplicações práticas na vida".

Desse modo, o pesquisador procura "vivenciar" as relações entre as partes. E o fazendo, talvez possa começar a sentir o que é "certo" para o lugar, o que ele "necessita", qual sua "intenção".

Encontrando o Genius loci

Nesse ponto, os pesquisadores começam a procurar palavras que surjam da contemplação do lugar. Talvez a cor? Um poema? Em tais estudos os organizadores desses projetos descobriram que não apenas de lugar para lugar mas também de ano para ano, pessoas diferentes visualizaram o mesmo "gesto" de um determinado lugar - muitas vezes no espaço de um ou dois metros. Quando você coloca de lado a si próprio, o Genius loci - o espírito do lugar - começa a "falar". Se chega a ele, não empilhando uma observação após a outra até que o edifício esteja completo, mas através de um insight que advém de evidência empírica. Esse insight é uma dimensão que vai além da experiência. O Genius loci não é passível de ser resumido. É revelado à percepção intuitiva através do fenômeno inteiro, mas não pode ser reduzido somente a suas partes. No entanto, se trata de "algo" palatável. Pode ser apreendido usando-se todas as faculdades da pessoa.

Um prelúdio de tal insight está contido nesta descrição do estudo de Colquhoun. Na propriedade há um espigão que corre ao longo de sua espinha central, e culmina em um domo. Deste ponto mais alto, despido e pisoteado, se descortinam vistas espetaculares. É um lugar de meditação - onde se vive as visões e os sons do mundo circundante. Ao sul, perto de uma estrada, é mais quente, constantemente zunindo de insetos, a vegetação formando uma espiral. Entre esses extremos pode-se ver através das árvores o leste e o oeste. Sente-se um sopro doce da brisa fresca. A vertente próxima da face sul é embalada por uma "qualidade calorosa de coração".

Finalmente

Conhecer o Genius loci é "tornar-se um com" o lugar. Sugere intervenções que podem ser aproveitadas. O objetivo sendo o de transformar "a paisagem para melhor se adaptar às necessidades das pessoas juntamente com as necessidades do lugar para torná-lo mais o que ele é".

Conclusão

Tal projeto almeja não somente reverter a degradação da natureza mas também a degradação da nossa consciência da natureza, de certa maneira mais devastadora do que trabalhos públicos mal concebidos porque prejudica de inúmeras e pequenas maneiras, mas freqüentemente cumulativas.

O filósofo inglês Jeremy Naydler (1996), resumindo o trabalho de Goethe, indica seu significado ecológico. "A renúncia moderna dos indivíduos de sua responsabilidade pela percepção da natureza afetou adversamente o modo pelo qual nossa cultura toda interage com o mundo natural. Esmagada pela absoluta complexidade e brilho do conhecimento científico, esta interação tornou-se progressivamente ignorante e insensível, Aqui, então, existe um aspecto do relacionamento entre ciência e a crise ecológica contemporânea, que é crítico mas constantemente desprezado. A menos que lidemos com isso, qualquer tentativa para regenerar nosso ambiente natural danificado provavelmente não será bem sucedida. A re-sensibilização da nossa consciência da natureza no dia-a-dia tornou-se uma tarefa que a própria natureza está nos impondo. É uma tarefa mais profunda e de um alcance muito maior do que legislação política, estratégia econômica, ou intervenção tecnológica. É a chave para restaurar o relacionamento harmonioso entre nós mesmos e o mundo natural".

Nas palavras do próprio Goethe, "Através de uma percepção intuitiva da natureza eternamente criadora nos tornamos merecedores de participar espiritualmente dos seus processos criativos".

REFERÊNCIAS

BORTOFT, H. The Wholeness of Nature: Goethe's way of science. Edinburgh: Floris Books, 1996.

COLQUHOUN, M. Uma exploração quanto ao uso da ciência de Goethe como um método para avaliação de paisagismo: O projeto de Pishwanton. Agriculture, Ecosystems and Environment, v. 63, p.145-157, 1997.

NAYDLER, J. Goethe on science. Edinburgh: Floris Books, 1996.